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Reflexões sobre engajamento da branquitude em movimentos pró-diversidade/inclusão racial em empresas

Em 2017, Theo van der Loo, empresário, branco, ex-CEO (Chef Executive Officer – Diretor Executivo) da Bayer S/A, postou na rede social LinkedIn um episódio de racismo empresarial sofrido por um conhecido seu:


Ontem, dia 24 de março, ouvi uma história inaceitável e revoltante. Um conhecido meu, afro-descendente, com uma excelente formação e currículo, foi fazer uma entrevista. Quando o entrevistador viu sua origem étnica disse à pessoa de RH que ele não sabia desse detalhe e que não entrevistava negros! Eu disse ao amigo para fazer uma denúncia. Aí outra surpresa! A resposta: “Pensei, mas achei melhor não fazer, pois posso queimar minha imagem. Sou de família simples e humilde, custou muito para chegar onde cheguei” (van der Loo, 2017).


Esse post rendeu aproximadamente meio milhão de visualizações – fato raro nessa rede social corporativa – e impactou a trajetória pessoal e profissional do empresário, tornando-o um ativista no sentido de influenciar seus pares CEOs sobre a necessidade de maior diversidade nas empresas. Passou então a fazer parte de um grupo chamado CEOs Legacy (Legado dos CEOs), com outros 30 executivos, que criaram o Movimento Impacto – CEOs pela Diversidade e Inclusão, até então inédito nesses moldes, com o envolvimento de altos executivos de empresas. 


Desde então (e até mesmo antes), diversos outros fatos foram expostos na mídia sobre racismo empresarial, dentre eles, a fala de Cristina Junqueira, CEO da fintech Nubank, que declarou, em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, que o banco não contratava negros porque não poderia “nivelar por baixo”, o que gerou tamanha avalanche de protestos que forçou a executiva a se desculpar publicamente e a empresa a investir R$20 milhões em projetos antirracistas. Mas foi em novembro de 2020, na véspera do dia da Consciência Negra, que esse tema ganhou repercussão, não só no Brasil como internacionalmente: o assassinato brutal de João Alberto Freitas, negro, por seguranças do supermercado Carrefour em Porto Alegre/RS. Inúmeras manifestações dos movimentos negros sobre o quanto “Vidas negras importam” resultaram na maior indenização para ações de combate ao racismo já paga até então: R$115 milhões.  


Esses episódios colocaram as empresas contra a parede do racismo corporativo, na luta pelo fim das desigualdades no país. Ampliou-se então o engajamento de CEOs brancos nos movimentos pró-Diversidade e Inclusão, para além do Movimento Impacto acima citado, tais como o Mover Movimento pela Equidade Racial e o Pacto de Promoção da Equidade Racial. Esses grupos buscaram então apoio e letramento racial dos movimentos negros, sobre os conceitos de raça, racismo e Negritude. 


Relembrando raça, racismo e Negritude


Muitos autores/as se debruçaram sobre o tema de raça, racismo e Negritude, dentre os/as quais Hall, Fanon e Césaire. Hall (2006, p. 66) afirma que, “Conceitualmente, a categoria ‘raça’ não é cientifica. [...] é uma construção política e social. É a categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e exclusão - ou seja, o racismo”. Essa definição nos indica que, embora a “cientificidade biológico/genética” do conceito de “raça” já tenha sido cientificamente descartado – uma vez que, sim, pertencemos todos à raça humana – ela permanece no imaginário coletivo e, ainda pior, hierarquizada, através de históricos estereótipos que têm um efeito perverso e permanente na população negra, inferiorizada em todas as esferas, inclusive na profissional. Fanon (2008) já afirmava que quem cria o inferiorizado é o racista e que a classe que detinha (e ainda detém) o poder, criou (e ainda mantém) esses estereótipos negativadores sobre os negros, reforçando assim sua suposta e autodeclarada superioridade branca. 


Entre vários/as intelectuais que se opuseram veementemente ao racismo, Césaire (2010) lançou o conceito de Negritude que, embora se configurasse como uma (re)afirmação de “si” mesmo a partir da (re)descoberta de seu valor como ser humano, esse “si”, na verdade sempre foi grupal, abrangendo toda a coletividade negra historicamente vitimada pelas teorias e práticas hegemônicas do racismo. Segundo esse autor, exatamente por conta da concretude do conceito de “raça” como um construto social, era imperioso confrontá-lo através de uma consciência identitária especificamente negra e coletiva. 


Isso realmente aconteceu e, particularmente no Brasil, foram inúmeras as contribuições dos movimentos negros na luta por políticas públicas que revertessem as imensas dificuldades que a população negra vem enfrentando há mais de 500 anos na busca por reconhecimento de sua condição de legítimos cidadãos brasileiros e, por isso, credores de todos os direitos que a constituição lhes promete. Lhes promete, mas não lhes outorga, pois, apesar das leis, quem as aplica (ou não) ainda é o poder hegemônico branco, que vê essas reivindicações dos movimentos negros como uma ameaça a seus privilégios, os quais não querem compartilhar e, menos ainda, perder. 


Entretanto, após cinco séculos de dominação, uma parcela da população branca hegemônica aparentemente sinaliza para uma tomada de consciência com relação à desigualdade abissal entre brancos e negros que se instaurou no Brasil. Em sua recente pesquisa, Schucman (2020, p. 30) salienta que “Os estudos críticos da branquitude apontam para a importância de estudar os brancos com o intuito de desvelar o racismo, pois eles, intencionalmente ou não, tem um papel importante na manutenção e legitimação das desigualdades raciais”. 


Revelando a Branquitude


Munanga (2012) considera o racismo no Brasil um crime perfeito e menciona a pesquisa feita pelo Jornal Folha de São Paulo em 1998: quando perguntados se havia racismo no Brasil, mais de 80% dos entrevistados afirmou que sim; entretanto, quando lhes perguntavam se eram racistas, a maioria disse que não, o que significa que este é o país do racismo sem racistas.  A partir de dados extraídos de entrevistas de pesquisa, Schucman (2020, p. 134) complementa que a “[...]a  ambiguidade e fragmentação dos discursos dos sujeitos me pareceram algo muito relevantes para a compreensão de como se mantém o racismo na sociedade brasileira”, fazendo com que eles “mantenham os privilégios, eximindo-se das responsabilidades”. 


Esse conceito dialoga com Munanga: embora os estudos sobre as relações étnico-raciais tenham sempre colocado o negro no centro da discussão e como “objeto” de pesquisas, como se ele fosse o responsável por encontrar solução para um problema  que não foi causado por ele – o racismo –, mais recentemente surge o movimento de incluir o branco nessa pauta, “partindo da hipótese de que os brancos, conscientes dos privilégios que sua cor lhes traz na sociedade, poderiam questioná-los e participar do debate sobre a divisão equitativa do produto social nacional entre brancos e negros [...]” (Munanga, 2017, p.11), estabelecendo assim uma relação de dialogismo entre negritude e branquitude e passando a contribuir para uma efetiva e necessária  transformação social. 

Em 2002, Bento aprofundou seus estudos racializando a branquitude como ciente (e defensora) de forma consciente ou não – de seus privilégios na sociedade brasileira. Em seu trabalho, ela conceituou a expressão “pacto narcísico” existente entre os brancos, que inclui a negação do racismo, barreiras aos negros em espaços de poder, silenciamento em casos de agressões e até mesmo a exclusão dos negros de todas as esferas: moral, afetiva, econômica e política. Schucman acrescenta: 


É por meio desse pacto que podemos pensar sobre o motivo de no Brasil, tanto negros como brancos naturalizarem o fato de que a maior parte dos moradores das periferias urbanas é de negros e a dos bairros centrais é de brancos; que alunos e professores em universidades públicas são brancos e faxineiros são negros; que nos restaurantes aqueles que estão sendo servidos são brancos e aqueles que servem são negros. Toda essa divisão racial do trabalho e dos espaços sociais é naturalizado de tal forma que tanto brancos como negros brasileiros raramente se espantam com essa realidade. (Schucman, 2020, p. 71)


Para mudar esse quadro e ampliar a Diversidade e Inclusão, há a necessidade real de aproximação entre ambos, embora Schucman (2020, p.191) ressalte que “a chave não está na convivência com os negros [...] mas sim na convivência não hierarquizada entre eles”, dificultada pelo próprio sistema capitalista em que vivemos.  


Desvelando a Diversidade e Inclusão


Apesar do crescente movimento pró-diversidade e inclusão, Polese (2020) tem uma visão bastante crítica sobre o real interesse das empresas em implementarem esse processo: para ele, o capitalismo, que ele chama de “identitário”, aparenta absorver as pautas reivindicatórias, mas seu objetivo é sempre transformá-las em lucro em prol do Capital, na medida em que as empresas contratarão negros com salários inferiores aos dos brancos, reduzirão conflitos internos, pois negros/as em cargos de liderança fazem com que seus subordinados também negros/as se mostrem menos conflituosos e mais produtivos e por fim fortalecerão a imagem de empresas “cidadãs”, atraindo mais consumidores, acumulando, assim, resultados tanto tangíveis como intangíveis. 


Segundo esse autor, a questão é até que ponto a Diversidade e Inclusão das “minorias” étnicas nas empresas colabora para o fim do racismo estrutural que os atinge de forma cruel e permanente. Até porque, o fato de gestores se alinharem às políticas de inclusão de suas empresas, não significa que, em sua vida pessoal, deixem de ser racistas.


Esperançando a inclusão racial


Embora os movimentos negros venham sendo convidados pela branquitude a atuar como consultores desses movimentos pró-inclusão racial e ainda não se possa realmente vislumbrar o fim do racismo que perdura há cinco séculos em nossa sociedade, qualquer movimento pró-mudança positiva para a população negra é bem-vindo, pois permite a ascensão de uma geração de negros/as que, até agora, mesmo com qualificação acadêmica e profissional, estão fora do mercado de trabalho ou em situação de subemprego.   

Ademais, se com o engajamento dos CEOs a inclusão racial possa ocorrer em suas empresas de forma “incompleta”, pois o racismo, sendo um dos pilares do capitalismo, não será extinto, sem a sua participação esse movimento de mudança nem sequer começará. E resta a esperança de que os brancos realmente participem pois, conforme Muller e Cardoso (2020), somente reconhecendo a humanidade dos negros, a branquitude poderá recuperar sua própria humanidade. Nesse sentido, nos ensina Freire (1992).


É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; 

porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. 

E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera. 

             Esperançar é se levantar, esperançar é ir atrás, esperançar é construir,

              esperançar é não desistir! Esperançar é levar adiante,

           esperançar é juntar-se com outros para fazer de outro modo […]

Sigo esperançando.


Referências


BENTO, M. A. Pactos narcísicos do racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese de Doutorado em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano. Universidade de São Paulo, São Paulo. 2002

CEOs’ LEGACY. Disponível em: https://ceoslegacy.fdc.org.br/ Acesso em 26 fev.2022.

CÉSAIRE, A. Discurso sobre a Negritude. Carlos Moore (Org.) Belo Horizonte: Nandyala, 2010.

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

FREIRE, P. É preciso ter esperança. In: Pensador.  Disponível em: https://www.pensador.com/frase/Mjg0MjkzMw/ Acesso em 26 fev.2022.

GOMES, K. Fundadora do Nubank diz que é difícil contratar negros e que não quer nivelar por baixo. Disponível em: https://www.hypeness.com.br/2020/ 10/fundadora-do-nubank-diz-que-e-dificil-contratar-negro-e-que-nao-quer-nivelar-por-baixo/ Acesso em 26 fev. 2022.

HALL, S. A identidade cultural da pós-modernidade.  Rio de Janeiro: DP&A,  2006.

MOVER. Movimento pela Equidade Racial. Para ser maior, só fazendo juntos. Disponível em: https://somosmover.org/?ltclid. Acesso em 27 fev. 2022. 

MOVIMENTO IMPACTO. CEOs pela Diversidade e Inclusão. Disponível em: https://www.fdc.org.br/conhecimento/noticia/fdc-lanca-o-movimento-impacto-ceos-pela-diversidade-e-inclusao. Acesso em 26 fev.2022.

MUNANGA, K. Nosso racismo é um crime perfeito. Disponível em: https://educacaopublica.cecierj.edu.br/artigos/9/43/nosso-racismo-eacute-um-crime-perfeito. Acesso em 26 fev. 2022.

O GLOBO. Carrefour fecha acordo na Justiça de R$ 115 milhões para ações de combate ao racismo após morte de João Alberto. Disponível em: https://oglobo.globo.com/brasil/carrefour-fecha-acordo-na-justica-de-115-milhoes-para-acoes-de-combate-ao-racismo-apos-morte-de-joao-alberto-25058457. Acesso em 26 fev.2022.

PACTO DE PROMOÇÃO DA EQUIDADE RACIAL. Disponível em: http://pactopelaequidaderacial.org.br/ Acesso em 26 fev. 2022.

POLESE, P. Machismo, racismo, Capitalismo Identitário: as estratégias das empresas para as questões de gênero, raça e sexualidade. São Paulo: Hedra, 2020.

SCHUCMAN, L.V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Introdução de Antonio Sergio Alfredo Guimarães. Apresentação de Leny Sato. Prefácio de Maria Aparecida Bento. - São Paulo: Veneta, 2020.

VAN DER LOO, T. “Eu não entrevisto negros”. Disponível em: https://www.linkedin.com/posts/theovanderloo_activity-6252683829606182912-kPII/  Acesso em 26 fev. 2022


Autora: Cleide Mello



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