O presente estudo busca analisar a narrativa literária em Americanah (2013), romance escrito por Chimamanda Adichie.
O presente estudo faz parte do meu projeto de mestrado que tem por objetivo analisar de que maneira a narrativa literária em Americanah (2013), romance escrito por Chimamanda Adichie, aborda os conflitos da personagem principal Ifemelu a partir dos rastros e vestígios de memória presentes ao longo da narrativa. Para isto, o projeto pretende examinar de quais recursos a personagem lança mão para construir suas performances identitárias e qual contribuição suas memórias têm para tal construção, além de investigar quais recursos de linguagem presentes na narrativa literária atuam corroborando a imagem que a personagem tem de si mesma.
Neste sentido, busca-se mostrar algumas memórias coloniais que comparecem nas performances identitárias de Ifemelu, especificamente, no capítulo 31 do romance. No capítulo em questão, a protagonista – uma mulher negra e nigeriana – relembra uma série de situações vividas por ela e um ex-namorado branco e estadunidense durante o tempo em que mantiveram um relacionamento. Para embasar as análises a serem realizadas, utilizamos os pressupostos teóricos de memórias coloniais propostos por Grada Kilomba (2008) e de linguagem como ação, por Judith Butler (1997).
Muito se fala, no campo dos estudos sociais, da relevância de se entender a memória e de sua relação com o indivíduo. Diversos estudos têm sido desenvolvidos há décadas, provocando uma transdisciplinaridade com outras áreas que atestam para a influência da memória para o ser humano em diversos aspectos de sua existência. Dentre tais áreas de estudo, destacamos a literatura como uma das formas de se recontar histórias partilhadas por um grupo através das memórias que são escolhidas e inseridas nas narrativas, bem como aquelas que são apagadas e esquecidas.
Através da literatura, muitos autores têm buscado questionar construções de identidade em torno de categorias como raça e gênero, bem como apresentar outras perspectivas da cultura e da ideia de nação de alguns países africanos. Ao longo dos últimos tempos, pudemos perceber uma movimentação de pensadores nigerianos que, através de relatos de memória passados por uma narrativa literária, buscam contar uma outra história de seu país de origem.
Grada Kilomba, em seu livro “Memórias da Plantação” ([2008]2019), também aponta que o racismo não se trata de fatores biológicos, mas de um ato discursivo. Em outras palavras, ações racistas são produzidas e estabelecidas discursivamente na sociedade. Por meio de narrativas, que são construídas e repetidas ao longo do tempo, ações racistas e discriminatórias são reforçadas. Entre tais ações há, inclusive, a possibilidade de reproduzir um discurso de apagamento e negação da existência do racismo e de todas as suas implicações. Da mesma forma, através do discurso torna-se possível criar práticas de resistência a atos racistas.
PERFORMANCES NARRATIVAS NA LITERATURA
Além de protestos e passeatas, discursos antirracistas e de resistência também são encontrados na música, artes cênicas, dança, pintura e na literatura. Pensando nesta última manifestação artística, há um extenso trabalho que vem sendo promovido em diferentes países com o objetivo de resgatar e narrar memórias da História das pessoas negras que foram apagadas ao longo dos últimos séculos. Países africanos, por exemplo, continuam sendo vistos de forma indistinta, reflexo de narrativas estereotipadas construídas ao longo do tempo.
Por conta disso, vários autores têm destacado em suas obras a pluralidade existente em cada país, dando voz e representatividade a realidades muitas vezes silenciadas ao longo do tempo. Dentre tais autores, destaca-se Chimamanda Ngozi Adichie, escritora e ativista que vem conquistando espaço internacionalmente com seus romances, contos, palestras e discursos. Sua produção aborda e procura desconstruir tais estereótipos em relação à África e, mais especificamente, à Nigéria, local onde nasceu e residiu durante boa parte de sua vida.
Um de seus romances, Americanah, escrito em 2013, é narrado em terceira pessoa e composto das memórias da protagonista Ifemelu, uma imigrante nigeriana que se mudou para os EUA para estudar em uma universidade. Após treze anos longe de seu país de origem, a personagem decide voltar a morar na Nigéria. Antes de viajar, no entanto, ela vai a um bairro nova-iorquino – conhecido por ser a residência de muitos imigrantes – para trançar seus cabelos da mesma forma que costumava fazer quando morava na Nigéria. Tal atitude traz uma série de memórias à tona, tanto de sua vida na América quanto na África, e estas levam a personagem a fazer diversas reflexões ao longo de todo o romance.
A partir de tais memórias, a personagem aponta as diferenças entre o que significa ser mulher e negra em cada país. Questões concernentes à construção identitária permeiam a narrativa, visto que a protagonista argumenta, por exemplo, não ter precisado definir ou pensar sobre o conceito de raça antes de imigrar para os Estados Unidos da América. Em contrapartida, ao retornar à Nigéria, a protagonista se vê diante de algumas situações incômodas mas comuns em seu país e se sente espantada ao notar que havia, de alguma forma, esquecido delas durante seu tempo em outro continente.
No momento em que passa a residir em um país não-Africano e com um histórico de legislações e práticas racistas, Ifemelu começa a se perceber diferente das demais pessoas que encontra nos EUA, inclusive aquelas também consideradas negras. Em suas memórias, Ifemelu destaca tais oposições ou diferenciações em situações vividas ao longo de mais de uma década em outro continente. Em contrapartida, ao rememorar sua vida em seu país de origem, a personagem tende a se posicionar declarando não ter experienciado tais distinções quanto à raça.
Partindo dos pressupostos propostos por Judith Butler (1997) sobre linguagem como ação, nesta pesquisa busco examinar de quais recursos a personagem lança mão para construir suas performances identitárias e qual contribuição suas memórias têm para tal construção. Não obstante, procuro investigar quais recursos de linguagem presentes na narrativa literária em questão atuam corroborando – ou não – a imagem que a personagem tem de si mesma.
Conforme aponta Grada Kilomba em seu livro “Memórias da plantação” (2008[2019]: 75),
Só se torna ‘diferente’ porque se ‘difere’ de um grupo que tem o poder de se definir como norma – a norma branca. Todas/os aquelas/es que não são brancas/os são construídas/os então como ‘diferentes’. A branquitude é construída como ponto de referência a partir do qual todas/os as/os ‘Outras/os’ raciais ‘diferem’. Nesse sentido, não se é ‘diferente’, torna-se ‘diferente’ por meio do processo de discriminação.
Em outras palavras, o processo de inclusão ou exclusão de determinada pessoa em algum grupo, quando pensamos no racismo, se dá através de características tidas como referenciais. Neste caso, elementos que constroem a imagem da pessoa branca (fenótipo, por exemplo) são utilizados para determinar quem pertence ou não ao grupo detentor de poder dentro da sociedade. Estas ações racistas, por sua vez, ocorrem através do discurso que, como afirma Kilomba, funcionam “através de uma cadeia de palavras e imagens que se tornam associativamente equivalentes, mantendo identidades em seu lugar” (2008[2019]:156-157).
Se entendemos que a sociedade atua por meio do discurso (ou narrativa), podemos dizer que os conceitos de raça e racismo se moldam aos interesses de quem os produz. Em Americanah (2013), há uma cena em que a personagem principal, Ifemelu, vivendo nos Estados Unidos há alguns anos, vai a um jantar com outras pessoas negras e de diferentes nacionalidades. Lá, uma mulher haitiana, em determinado momento, afirma que já namorou homens brancos na América e que raça não era uma questão. Segundo ela, a diferença racial não se fazia presente. Ifemelu, que também já tinha tido um relacionamento com um homem branco americano, retruca tais afirmações, causando desconforto no jantar. Segundo a personagem, conflitos em relação à raça não estavam presentes em seu país de origem, a Nigéria, enquanto nos Estados Unidos havia um discurso racista que se materializava através de performances.
Ela segue, então, rememorando situações vividas por ela quando namorava Curt que corroborem tal ponto de vista. É interessante frisar que este parceiro surgiu em sua vida quando a protagonista trabalhava como babá na casa de uma prima dele. Curt, um homem jovem, branco e de classe social alta, uma vez a levou para conhecer uma tia dele e esta é uma das lembranças que Ifemelu utiliza em sua narrativa:
Mas, certa vez, eles foram visitar a tia de Curt, Claire, em Vermont, uma mulher que tinha uma fazenda de produtos orgânicos, andava descalça e falava sobre o quanto aquilo a fazia sentir-se conectada com a terra. Por acaso Ifemelu tinha tido uma experiência parecida na Nigéria?, perguntara ela, fazendo uma cara de decepção quando Ifemelu respondeu que sua mãe lhe daria um tapa se ela saísse sem sapatos. Durante toda a visita, Claire falou sobre seu safári no Quênia, sobre a elegância de Mandela, sobre sua adoração por Harry Belafonte, e Ifemelu temeu que fosse começar a usar as gírias dos negros americanos ou a falar suaíli’.
Depois que eles deixaram sua enorme casa, ela disse: ‘Aposto que ela seria uma mulher interessante se fosse ela mesma. Não preciso que se esforce tanto para me assegurar que gosta de pessoas negras’. E Curt disse que a questão não era a raça, mas o fato de que sua tia tinha uma consciência aguda da diferença, qualquer diferença. ‘Ela teria feito exatamente a mesma coisa se eu tivesse aparecido lá com uma russa loura’.
É claro que a tia dele não teria feito a mesma coisa com uma russa loura. Uma russa loura era branca, e a tia não teria sentido a necessidade de provar que gostava de pessoas com a aparência da russa loura. Mas Ifemelu não disse isso a Curt, porque lamentou que não fosse óbvio para ele” (ADICHIE: 2013, p. 247).
Neste trecho, podemos observar uma situação que Grada Kilomba chama de “constelação triangular do racismo” (2008[2019], p. 147). A autora nomeia de tal maneira uma situação em que há três pessoas desempenhando funções diferentes na manutenção do racismo. Em primeiro lugar, temos a personagem que performa o racismo e, que neste caso, é a tia Claire, uma mulher branca e de classe social alta. Ela atua tentando justificar em seu discurso que admira pessoas negras e que conhece a “cultura” africana. A segunda personagem nesse triângulo seria a pessoa negra que sofre a agressão e a terceira, a “plateia branca, que observa a performance”. O silêncio de Curt enquanto as ações aconteciam também diz muito sobre o consenso que existe em sua performance.
Vemos, neste e em outros trechos do romance, uma narrativa construída a partir de memórias que corroboram a existência de performances racistas na sociedade americana. A personagem utiliza experiências pessoais de racismo cotidiano vivenciadas por ela para afirmar sua percepção de que há racismo dentro da sociedade, inclusive dentro de relações amorosas inter-raciais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No romance Americanah (2013), temos acesso ao contexto vivido pela personagem principal Ifemelu, que acessa memórias de um relacionamento inter-racial para argumentar raça como uma construção social e discursiva. É interessante destacar que tanto este relacionamento quanto a percepção da personagem sobre a existência do discurso em torno de raça só emergem quando Ifemelu sai da Nigéria e passa a viver nos Estados Unidos.
Dentro de tal narrativa, a protagonista evoca memórias que Grada Kilomba (2008[2019]) caracteriza como racismo cotidiano. Observamos, assim, ações que posicionam a personagem como o Outro, espaço ocupado por aqueles que não são enquadrados no grupo tido como referência: o do homem branco. Faz-se necessário, portanto, continuar desenvolvendo pesquisas que tenham como objeto de estudo analisar a narrativa literária de autores negros e africanos para compreendermos como a raça e o racismo são vistos a partir da ótica de quem sofre seus desdobramentos. Estas discussões podem, inclusive, nos direcionar para possíveis formas de atuação no que diz respeito à conscientização da população sobre os efeitos de um discurso racista, bem como para políticas que atuem na contramão de tal narrativa.
REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Americanah. London: Fourth State, 2013.
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo, Editora Jandaira, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
BUTLER, Judith. Excitable speech. A politics of the performative. Routledge: New York, 1997.
Autora: Tayene Santos
Possuo Licenciatura em Letras Português e Inglês pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2017) e faço parte do Programa de Pós-Graduação em Memória Social na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro. Meus interesses de pesquisa incluem Literatura, construção identitária, estudos acerca de raça e gênero.
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