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Em 2019, iniciei o Projeto de Extensão “Narrativas e Letramentos de Reexistência”, cujo objetivo era produzir material visual – publicitário, que, ao destronar a branquitude da exclusividade publicitária, buscasse trazer não somente o protagonismo, mas também a escrita de narrativas de reexistência para mulheres negras e da periferia da região da cidade de Arraial do Cabo (FERREIRA, 2019). A partir desse projeto, que teve duração de um ano, foram realizados ensaios fotográficos com mulheres negras da região dos lagos, de diferentes idades e com diferentes perfis estéticos. Para divulgação do material fotográfico e publicitário, criamos catálogos publicitários, distribuídos por redes sociais, e um perfil no Instagram (@biojoiascleusinha), além da publicação de um artigo (FERREIRA, no prelo) e participação em congresso.
Em paralelo a esse projeto, como professora de Inglês Instrumental do IFRJ – CAC, vinha observando, há dez anos, alguns desconfortos entre alunos/as todas as vezes em que eu discutia questões identitárias, com destaque para questões de gênero e raça, nas aulas que ministrava. Esse desconforto parecia ser em função das problematizações que eu fazia acerca das desigualdades sociais ou das discriminações, mas para as quais eu não sugeria outras versões ou narrativas. Em outras palavras, como propõe Pinheiro (2021), “partir unicamente desse marcador da denúncia e negação é orbitar em torno da agência do ocidente (...) Que tal nos mobilizarmos a partir das presenças e não das ausências?” (PINHEIRO, 2021: 68). Em diálogo com essa visada, voltei-me a tarefa de estudar e refletir sobre como poderia “empoderar a juventude negra a partir do reforço positivo dos seus traços intelectuais, fenotípicos e sociais” (id.). Nesse sentido, o presente projeto tem por objetivo problematizar os efeitos ideológicos do pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2014), na vida acadêmica e nas representações artísticas (fotográficas) e sociais, assim como refletir sobre os efeitos positivos da apresentação e representação de subjetividades afroperspectivadas (NOGUERA, 2012), a partir da visada afrofuturista (NELSON, 2002/2020; WOMACK, 2015).
A perspectiva aqui adotada, portanto, se alinha ao conceito de branquitude crítica de Cardoso (2017). Em outras palavras, entendo branquitude como:
uma posição em que sujeitos que ocupam esta posição foram sistematicamente privilegiados no que diz respeito ao acesso a recursos materiais e simbólicos, gerados inicialmente pelo colonialismo e pelo imperialismo, e que se mantêm e são preservados na contemporaneidade (SCHUCMAN, 2015: 56).
E a partir dessa visada, me alinho, então, às propostas e provocações de Cardoso (2017) quando ele nos convoca à “tarefa de ‘desaprender o racismo’” (op. cit., p. 41), compreendendo essa desaprendizagem como uma “tarefa diária” (op. cit., p. 49). Vale lembrar que, mesmo alinhada aos estudos críticos da branquitude, como mulher branca, ainda ocupo lugar de privilégios simbólicos e materiais na sociedade. Nesse sentido, Cardoso (2017) alerta que tanto as pessoas brancas com uma postura crítica (a “branquitude”), como aquelas pessoas não críticas (a “branquidade”) “serão tratadas da mesma forma pela sociedade; ambos terão benefícios raciais por serem brancos” (op. cit., p, 49). Não obstante, isso não significa que não devamos nos engajar em práticas de letramento racial crítico (TWINE; STEINBUGLER, 2006; SCHUCMAN, 2015; FERREIRA, 2015) e combater a supremacia racial branca (SAAD, 2020) e o pacto narcísico da branquitude (BENTO, 2014) na sociedade, no âmbito das representatividades e também na esfera acadêmica (SOVIK, 2009; NOGUERA, 2012; PINHEIRO, 2021).
Saad (2020) nos lembra que a “supremacia racial branca é uma ideologia racista que se baseia na crença de que os brancos são superiores em muitos aspectos às pessoas de outras raças e que, portanto, os brancos devem ser dominantes sobre outras raças”. Inúmeros são os trabalhos, estudos e publicações que apontam as consequências violentas da ideologia supremacista branca na vida social, nas representações e manifestações artísticas e no mundo acadêmico. Professor Abdias Nascimento (1978) já denunciava que o embranquecimento cultural é outra forma de genocídio do povo negro. No âmbito escolar / acadêmico, a Professora Elisa Larkin Nascimento (1991) também chama atenção para a a valorização da história das civilizações Africanas e para a perspectiva afrocentrada, em contraposição aos “conteúdos universais”, apresentados como neutros, mas que, na verdade, são euro- perspectivados e brancos. Ainda no espaço escolar, Eliane Cavalleiro (2001: 158) critica o silêncio diante das discriminações raciais e destaca a urgência de “busca de materiais que contribuam para eliminação do eurocentrismo dos currículos” e que trabalhem o “reconhecimento positivo da diversidade racial” ou, como proporia Renato Noguera (2012), da pluridiversidade.
Por fim, destaco ainda Barbara Carine Soares Pinheiro (2021) com sua obra “História Preta das Coisas” que nos alerta “acerca da dificuldade que a cultura ocidental eurocêntrica tem de compreender outras formas de produção de conhecimento que não estejam assentadas na sua forma de entender e de se relacionar com o mundo” e, em diálogo com o filósofo congolês Theóphile Obenga, “busca criticar o eurocentrismo e a sua proposição falaciosa da esterilidade intelectual africana” (PINHEIRO, 2021: 62). No entanto, “a imagem distorcida da África, ou sua omissão, nos currículos escolares brasileiros legitima e ergue como verdades noções elaboradas para reforçar a supremacia branca e a dominação racial” (NASCIMENTO, 2001: 124).
Nesse sentido, para colaborar com estudos críticos da branquitude, criticar a supremacia racial branca e se opor ao pacto narcísico da branquitude, o presente projeto visa analisar os efeitos da apresentação de outras representatividades negras a alunos/as do IFRJ – CAC, com destaque para o pensamento afrofuturista.
Ciente de que “(...) o desenvolvimento político africano era acompanhado por um processo de desenvolvimento tecnológico, menos reconhecido ainda na versão histórica transmitida pelos currículos escolares em vigor” (NASCIMENTO, 2001: 128), me alinho ao convite de Pinheiro (2021: XVIII) que nos propõe a “sankofamente olharmos para um passado pioneiro e grandioso (...) de um modo positivado e não mais escravagista, construindo no tempo presente novas identidades negras altivas e olhando para o futuro”. Essa visada dialoga diretamente com o pensamento afrofuturista.
A perspectiva ou pensamento afrofuturista é uma área de estudos, produção epistêmica e reflexão afroperspectivada demasiado ampla para ser discutidas nessas breves páginas. Como afirma Womack (2015: 30) “combina elementos de ficção científica, ficção histórica, ficção especulativa, fantasia, afrocentricidade (...) com crenças não ocidentais. Em alguns casos, é uma reelaboração total do passado e especulação sobre o futuro repleto de críticas culturais”. Ou ainda, como sugere Alondra Nelson, “o afrofuturismo pode ser amplamente definido como ‘vozes afroamericanas’ com ‘outras histórias para contar sobre cultura, tecnologia e coisas futuras’” (NELSON, 2002/ 2020, p. 83). Essa definição de Nelson é bastante relevante porque traz destaque para outras narrativas e, portanto, outras produções e manifestações epistemológicas, históricas, filosóficas, musicais, visuais e audiovisuais diferentes das eurocentradas já tão conhecidas e disseminadas.
Além da visada sankófica, que nos convoca a “recuperar as histórias negras e pensar em como essas histórias permeiam toda uma variedade de culturas negras hoje em dia” e “pensar em como essas histórias e culturas poderiam inspirar novas visões do amanhã” (YASZEK, 2013/ 2020: 142), as produções afrofuturistas devem ser realizadas e criadas com protagonismo de pessoas negras e por pessoas negras.
Uma vez que sou uma mulher branca que deseja participar dessa discussão, reconheço a necessidade não somente de adotar uma perspectiva afrocentrada (ASANTE, 2009) nos estudos e ações, como também do estabelecimento de parcerias de trabalho que promovam esse protagonismo e participação negra na criação e na produção dessa representatividade. Sendo assim, indico três parcerias já estabelecidas até o presente momento, a saber com o fotógrafo, artista plástico e músico Sebastian J. de Souza (@sebastianphotografia), com o Professor do Museu Goeldi/PPGDS José Sena (@okecaboko) e com a bailarina afro, coreógrafa e educadora Junia Bertolino (@ciabaobaminasoficial). Outras parcerias deverão ser buscadas e desenvolvidas ao longo do projeto, com a firme intenção de produzir reflexões, intervenções e conteúdos teóricos, ensaísticos, didáticos, artísticos, visuais e audiovisuais que se contraponham à supremacia racial branca e que busquem visibilizar representatividades negras, pela perspectiva afrofuturista, além de acompanhar os efeitos alcançados com essas produções e intervenções semióticas e epistemológicas, a partir da metodologia de cartografia entendida aqui como “método de pesquisa- intervenção” (PASSOS; BARROS, 2015: 17).
BIBLIOGRAFIA:
ASANTE, M. K. Afrocentricidade: notas sobre uma posição disciplinar. In.: NASCIMENTO, E. L. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora, 2009. BENTO, M. A. S. Branqueamento e Branquitude no Brasil. Disponível em http://www.media.ceert.org.br/portal-3/pdf/publicacoes/branqueamento-e- branquitude-no-brasil.pdf, 2014. Acesso em 16 / 04 / 2021 CAVALLEIRO, E. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola, 2001. CARDOSO, L. A branquitude acrítica revisitada e as críticas. In.: ---. Branquitude: estudos sobre a identidade branca no Brasil.. 2017. FERREIRA, A. J. Letramento Racial Crítico através de narrativas autobiográficas, 2015. FERREIRA, M. A. G; SILVA, M. I. P. ; PAULA. R. M. L. de. “Brilho de Azeviche na Cultura Cabista” (2019). Longa Metragem duração 70 minutos e 51 segundo. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=eKIUBafhqFo&t=10s FERREIRA, M. A. G. O olhar como performance de gênero: letramento interseccional no Instagram. No prelo. NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro, 1978/2016. NASCIMENTO, E. L. A África na escola brasileira. Relatório do 1o Fórum Estadual sobre o Ensino de História das Civilizações Africanas na escola pública, 1991. ___. Sankofa: educação e identidade afrodescendente. In.: CAVALLEIRO, E. Racismo e anti-racismo na educação: repensando nossa escola, 2001. NELSON, A. “Introduction”, Future Texts. Social Text, 2002 / 2020. NOGUERA, R. Denegrindo a educação: Um ensaio filosófico para uma pedagogia da pluriversalidade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação. Número 18: maioout/2012, p. 62-73. PASSOS, E.; BARROS, R. B. A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In.: PASSOS et al. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade, 2015. PINHEIRO, B. C. S. História Preta das Coisas: 50 Invenções científico- tecnológicas de pessoas negras, 2021. SAAD, L. F. Eu e a supremacia branca, Rio de Janeiro: Rocco, 2020. SOVIK, Liv. Aqui ninguém é branco. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2009. SCHUCMAN, L. V. Entre o “encardido”, o “branco” e o “branquíssimo”: raça, hierarquia e poder na construção da branquitude paulistana SP, 2012. 160 f TWINE, F. W.; STEINBUGLER, A. The gap between whites and whiteness: Interracial Intimacy and Racial Literacy. In.: Du Bois Review Social Science Research on Race, 2006. WOMACK, Y. Cadete especial In.: FREITAS et al. Afrofuturismo: Cinema e Música em uma Diáspora Intergaláctica, 2015. YASZEK, L. Race in Science Fiction: The Case of Afrofuturism. A Virtual Introduction to Science Fiction: Online Toolkit for Teaching SF, 2013/ 2020.
SOBRE A AUTORA
Profa. Dra. Maria Aparecida G. Ferreira
Doutora em Linguística Aplicada (UFRJ)
Integrante do Grupo de Pesquisa de Práticas de Letramento na Ensinagem de Línguas e Literatura (PLELL)
Integrante do Grupo de Pesquisa de Performatividades, Raça e Interseccionalidades (PRINT)
Colaboradora do NUGEDS
Colaboradora do NEABI
E-mail: maria.ferreira@ifrj.edu.br
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