O professor Kabengele Munanga uma vez disse que o racismo no Brasil pode ser comparado a um iceberg: o que nós vemos dele é só uma pontinha que está manifesta nas ações mais aparentes. No entanto, a parte maior é aquela que está submersa. E é aí, nesse espaço, que as práticas racistas se desenvolvem dentro de cada um de nós e produz uma série de danos psicológicos às pessoas negras, ao mesmo tempo em que produz uma supervalorização idealizada da população branca. Essa parte submersa do iceberg foi construída através de um processo histórico cultural ocorrido no Brasil, principalmente, no pós-abolição, de constituição de uma ideologia do branqueamento. Nesse momento, o Brasil passava pela sua construção identitária como uma nação cuja massa de ex escravizados, agora livres, de alguma forma precisavam ser integrados àquela ideia de nacionalidade que surgia. E a maneira como ocorreu esse processo caracterizou-se por dois momentos que não se desvinculam entre si: um, pelo ideal de superioridade dos brancos em relação aos negros, estabelecido pela ciência europeia e que, no Brasil, foi adotado como a necessidade de miscigenação – até as marcas mais ostensivas dos povos indígenas e africanos se apagarem. E, outro, mais tarde, pelo ideal de harmonia da mistura das raças e da miscigenação: o mito da democracia racial, que no Brasil ganhou força na primeira metade do século XX e que ainda hoje persiste no nosso imaginário, mas que não eliminou o ideal de superioridade e inferioridade racial. É o que chamamos também de supremacia branca, em níveis globais. E, nesse sentido, um dos privilégios simbólicos dos brancos em relação aos negros é a sua não caracterização como raça. Por exemplo, os estudos sobre a questão racial no Brasil têm reafirmado o racismo como um “problema do negro”. Isso quando não se nega a discriminação racial. Mas, de qualquer jeito, o branco não é estudado e há o silenciamento sobre a herança branca da escravidão, bem como sobre a existência de um modus operandi chamado de branquitude que reafirma cotidianamente privilégio brancos. O lugar racial dos brancos, o sentido de ser branco no Brasil e no mundo precisa ser examinado também. A pesquisadora Lia Vainer Schucman estudou sobre o assunto com a tese Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo (2020). E uma das questões importantes sobre o estudo da branquitude é justamente compreender a dimensão submersa do racismo no Brasil, pois sempre que se fala em racismo remete-se aos negros, excluindo brancos do processo de racialização. Isso faz com que o discurso branco seja ainda mantido no lugar da neutralidade, ou seja, a realidade continua sendo percebida a partir desse suposto lugar de poder não nomeado. O branco possui um conforto que pode atribuir ao outro o que não atribui a si mesmo. Os brancos representam nada mais do que as suas próprias individualidades, enquanto negros são sempre coletivizados. Isso é o que Edith Piza (PIZA in BENTO; CARONE, 2014) chama de lugar de raça: “o lugar do negro é o seu grupo como um todo e do branco é o da sua individualidade. Um negro representa todos os negros. Um branco é uma unidade representativa apenas de si mesmo. Não se trata, portanto, da invisibilidade da cor, mas da intensa visibilidade da cor e de outros traços fenotípicos aliados a estereótipos sociais e morais, para uns, e a neutralidade racial, para outros. As consequências dessa visibilidade para negros é bem conhecida, mas a da neutralidade do branco é dada como ‘natural’, já que é ele o modelo paradigmático de aparência e de condição humana” (p. 72). Levando em consideração a ideia de que, como sociedade colonizada, ainda somos afetados pela colonialidade, Grada Kilomba (2019) vai caracterizar a branquitude e a Outridade a partir dessa construção do Outro negro pelo sujeito branco. Desse modo, o sujeito negro não é só o Outro em relação ao qual o “eu” da pessoa branca é medido, mas é também a Outridade: a personificação de aspectos repressores do “eu” do sujeito branco, ou seja, aquilo que o sujeito branco não quer se identificar – as fantasias brancas sobre o que a negritude deveria ser – o imaginário branco. E nesse processo tudo de negativo é associado ao negro, incluindo sua inserção numa categoria desumana. No meu percurso como professora, pesquisadora e angoleira, essa percepção faz toda a diferença e precisa estar inserida nas minhas ações e produções. Digo isso, pois o fato de ser uma mulher branca praticante da capoeira angola está inserido em minha pesquisa, e a perspectiva que adoto é a de eliminar as distinções acadêmicas entre sujeito e objeto, o que Grada Kilomba chama de pesquisa centrada nos sujeitos. Hoje, pesquiso a capoeira angola através do Projeto Bantu, realizado pelo mestre Roxinho. Edielson da Silva Miranda, mestre de capoeira angola da Escola de Capoeira Angola Mato Rasteiro (ECAMAR) e idealizador do Projeto Bantu que, em 2007, foi para a Austrália e iniciou o trabalho com os estudantes africanos refugiados (1, 2). No percurso investigativo desenvolvi quatro conceitos para melhor tratar da capoeira angola como uma epistemologia de origem negro-africana que reencontra África a partir dos jovens refugiados. Essa manifestação cultural possui qualidades importantes para a reconstrução das subjetividades fragmentas pelo colonialismo e, de fato, a capoeira angola pode salvar vidas (como também salvou a minha). No entanto, existe uma particularidade, que na verdade é uma universalidade, ou melhor dizendo, uma pluriversalidade em sua prática que, por vezes, vem sendo apropriada, sublimada ou até mesmo assimilada pela branquitude. E para falar disso tratarei brevemente de dois dos quatro conceitos que desenvolvo em minha tese de doutorado: racionalidade do aú e emancipação afrorreferenciada. Os limites do corpo para mim na capoeira angola sempre foram algo desafiador. Ver o mundo de cabeça para baixo! Até hoje percebo como é difícil fazer movimentos que deslocam a ordem social. A bananeira é o exemplo clássico. Puxa vida, como é difícil depois de adulto sair do eixo da suposta normalidade. Eu prestava atenção em como essa dificuldade afetava as mulheres. Os meninos e homens pareciam ter mais facilidade para tentar. As meninas e mulheres tinham mais medo e vergonha. Afinal, trata-se de colocar o bumbum para o alto. E a perspectiva muda radicalmente: aquele corpo que socialmente é visto como um corpo sexualizado, voltado para o prazer masculino, para as obrigações domésticas está agora brincando, vadiando. Essas foram algumas das questões que desde sempre me moveram dentro da capoeira angola: as amarras do corpo, do corpo feminino, que desde muito cedo é tratado como objeto sexual. Qual mulher que, quando criança, não foi assediada por um homem na rua? “Mas era só um simples fiu fiu”. Mas era só uma criança. Isso quando é só um fiu fiu. Normalmente, a coisa é mais pesada. Olhares, palavras, quando não, toques inapropriados. A partir dessas reflexões iniciais e do meu contato com o movimento negro, pude ir construindo meu discurso a partir do lugar racial de mulher branca e, com isso, entender que a sexualização do corpo da mulher negra acontece de forma ainda mais grave devido ao racismo (AKOTIRENE, 2020). As amarras estão profundamente conectadas à colonialidade. E elas se cristalizam nos corpos e no uso desses corpos no espaço. Colocar os pés para cima e vadiar é romper com essas amarras. É liberdade. Pois gingar trata-se de liberdade. É comum ouvirmos que a capoeira era praticada pelos negros na época da escravidão como forma de resistência. E era. Mas, de onde vem a ginga? E o que é a corporeidade africana? A questão cultural da diáspora ainda é pouco estudada, mas hoje já se sabe sobre a grande influência banto na cultura negra brasileira. A rainha Jinga e a ginga da capoeira são um exemplo. Além das festas tradicionais de coroação do rei do Congo e da rainha Jinga, a própria expressão gingar, usada, principalmente, na capoeira, revela uma aproximação desses mundos (TEIXEIRA, 2020). Em relação à corporeidade africana, Nilma Lino Gomes (2017) é uma autora referência na condução das análises sobre os saberes estético-corpóreos produzidos como ciência. Portanto, buscou-se na tese, no campo da educação e saúde, alicerçar a constituição epistemológica da capoeira angola através do que Boaventura de Sousa Santos chamou de ecologia dos saberes (3). E é aqui que está a chave da racionalidade do aú para tratar dos corpos que foram e são violentados pela colonialidade. Mestre Pastinha dizia: “Amigos o corpo é um grande systema de razão, por detraz de nossos pensamentos acha-se um Snr. poderoso, um sabio desconhecido”. Os ensinamentos de Mestre Pastinha são muito bonitos e importantes, principalmente porque ele teve uma participação fundamental na localização africana da capoeira angola. Desse modo, a ginga representa não somente a origem dessa arte como também os conhecimentos que nela se encontram. Conhecimentos esses que são guiados por uma outra racionalidade que não é a racionalidade euro-ocidental, mas sim uma racionalidade pluriversal, com raízes plantadas em África, ou seja, afro-diaspórica, que aqui chamo de racionalidade do aú e está ligada à frase de mestre Pastinha acima. A produção de conhecimento moderna ignora a riqueza da antiguidade africana como produtores de sistema de escrita, de arte, de ciência e de civilizações complexas. Uma noção de centralidade e universalidade eurocêntrica precisa ser analisada para compreender as forças de poder que atuam nos silenciamentos históricos no que se refere aos povos subalternizados pelo colonialismo europeu, como os povos africanos e indígenas. A África foi roubada epistemologicamente. E a racionalidade do aú é uma maneira de virar esse jogo, no campo da educação e saúde, através da capoeira angola. E, para isso, é preciso que o lugar do branco na capoeira angola passe pelo entendimento de que a branquitude construiu esse Outro negro a partir de características negativas e de não-saberes. Na pesquisa de doutorado, utilizo desses conceitos para entender como foi o contato da capoeira angola com os jovens de origem africana refugiados na Austrália. Permeados pela violência colonial e pela supremacia branca em seus territórios e em um país ocidentalizado, esse encontro é visto com lupa e permitiu elaborar teorias sobre a autorrecuperação e emancipação desses sujeitos – que chamei de emancipação afrorreferenciada. Com enfoque no campo da Educação e Saúde, a emancipação afrorreferenciada está articulada com as humanidades através do cosmograma bakongo e do ubuntu, filosofias dos povos banto-congo. A branquitude intrínseca à violência colonial dificulta o processo de ensino- aprendizagem da capoeira angola e, para que esse processo aconteça, é requerido um desembrutecimento dos sentidos ocidentais e suas amarras. A emancipação afrorreferenciada fala disso. De diferentes maneiras, a racionalidade euro-ocidental prejudica os corpos – principalmente os não-europeus. Isso porque foram pessoas escravizadas durante a chamada Idade Moderna e que ainda levam o estigma de sub- humanos, mesmo a ciência tendo reconhecido a sua humanidade sob o ponto de vista biológico. No entanto, a emancipação afrorreferenciada não trata somente de pessoas negras, mas considera fundamentalmente a sua trajetória histórica no mundo euro- ocidental e racista. Gosto muito do exemplo da Aza Njeri quando ela insere as violências coloniais dentro de uma escala e compara o topo (o lugar de mais poder) dessa escala com o Senhor do Ocidente representado pelo personagem de Leonardo de Caprio no filme “Lobo de Wall Street” (2020): homem branco heterossexual capitalista. Pois essa escala colonial é móvel e no jogo das disputas geopolíticas, estamos todos inseridos e nos movendo nela.
É notório que os benefícios da capoeira angola se estendam às pessoas negras e não-negras, mas a existência de corpos não-negros na capoeira angola não pode apagar a origem dos saberes estético-corpóreos africanos. Isso não significa que o livramento das amarras coloniais passe somente pelos corpos negros, mas os sentidos desses saberes emancipatórios não podem ser perdidos de vista, muito menos esses sujeitos. Logo, a compreensão do corpo branco no espaço da capoeira angola, realizada da perspectiva da emancipação afrorreferenciada, compreende a decolonialidade do ser, do poder e do saber e, do meu ponto de vista, precisa passar pelo desconforto.
“A capoeira angola é para todos, mas nem todos são para a capoeira angola”. Essa é uma frase corriqueira no universo da capoeira e, para mim, significa esse desconforto gerado pelo processo de ensino-aprendizagem dessa arte que precisa existir. No caso dos brancos, o desconforto é uma excelente oportunidade de deixar a supervalorização idealizada da população branca que também causa desajuste psicológico quando o feio, o ruim e o errado estão sempre no Outro, sendo esse Outro um grupo racial, não somente um outro em contraponto ao eu-indivíduo.
Esse é um dos maiores aprendizados que venho realizando com o auxílio da capoeira angola, essa sabedoria ancestral decolonial: i) me deparar com meus monstros e entender como eles atuam no meu ser no mundo; ii) atuar politicamente de forma coletiva de modo a reforçar o meu posicionamento racial na luta antirracista; e iii) produzir conhecimento acadêmico a partir e com os saberes estético-corpóreos africanos.
O objetivo é trazer à luz uma visão da capoeira angola coadunada com o continente africano e suas filosofias – principalmente as de origem bantu-congo – para a produção de conhecimento do campo da educação e saúde na infância e na adolescência, pois a educação é urgente que seja revista, bem como os malefícios do racismo para a saúde desses jovens. E a capoeira angola tem muito o que colaborar na busca pela liberdade física e mental através da corporeidade africana.
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NOTAS DE FIM
1 - Embora o Projeto Bantu atue com estudantes refugiados de diversas origens, como os asiáticos, o enfoque maior aqui foi dado aos estudantes africanos devido a origem afro-diaspórica da capoeira angola.
2 - Ver https://www.youtube.com/watch?v=LAPNtpzvhfM. O mestre Roxinho, Edielson Miranda da Silva, iniciou seu percurso com o Projeto Bantu ainda em 1998. De lá para cá, o projeto foi se desenvolvendo e ele atuou em diversas localidades até chegar na Austrália. Hoje, o Instituto Bantu possui sede na Ilha de Itaparica, Vera Cruz.
3 - Os outros dois conceitos discutidos na tese são: ciência quilombista e educação angoleira e, embora os quatro conceitos estejam conectados, aqui me detive somente na racionalidade do aú e emancipação afrorreferenciada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra,
2020.
BENTO, Cida; CARONE, Iray (org.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6 ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. 1 ed. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
MORAES, Viviane Mendes de (Aza Njeri). Reflexões artístico-filosóficas sobre a humanidade negra. In: Revista Acadêmica Ítaca, UFRJ, n. 36 – Especial Filosofia Africana, 2020.
SCHUCMAN, Lia Vainer. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: branquitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. 2 ed. São Paulo: Veneta, 2020.
TEIXEIRA, Mariana. Mas, por que os africanos? Atlântico Sul editora, São José dos Campos, 12/09/2020. Disponível em https://atlanticosuleditora.wixsite.com/atlanticosul/post/mas-por-que-os-africanos. Último acesso: 08/03/2022.
TEIXEIRA, Mariana; PEREIRA, Maira; MELO, Ivani de. I Ciclo Formativo de Educação Antirracista do Núcleo de Estudos Yabás: proposta de formação de professores para a aplicação da Lei 10.639/2003. Interritórios. Revista de Educação Universidade Federal de Pernambuco, Caruaru, Brasil, v. 7, n. 13, 2021.
Autora: Mariana Castro Teixeira
Educadora e pesquisadora antirracista, trabalha na perspectiva da Lei 10.639/2003 com formação de professores junto ao Núcleo de Estudos Yabás e à Atlântico Sul editora. Está finalizando o doutorado em Educação e Saúde na Unifesp, é capoeirista angoleira e coordena o cursinho popular da Uneafro em Jacareí (SP).
Contato: marianacastroteixeira@gmail.com
Mariana, parabéns!! Um texto necessário e potente que problematiza questões fundamentais contemporâneas.