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Como me descobri enquanto mulher negra



O ano era 2012, eu tinha treze anos. Meu pai foi transferido no trabalho do Rio de Janeiro para Curitiba, morei lá por um ano com meus pais.

Numa simples atividade entre colegas de classe em uma turma de oitavo ano, não me recordo a matéria, precisávamos falar da precariedade e da falta de investimento do governo no ensino público. Éramos quatro integrantes no grupo, três pessoas brancas e eu a única negra.

Era meu primeiro ano na escola, ninguém do grupo me conhecia direito. Uma menina simplesmente perguntou:

- Então, Júlia e Pietra, vocês poderiam falar um pouco pra gente como é a escola pública.

Eu respondi dizendo algo como “os governantes realmente não cumprem com o que dizem que vão fazer nessas escolas”. Porém, depois de responder, eu fiquei com aquele olhar de interrogação, dúvida e incerteza. Ela conhecia a Pietra, eram amigas há anos, mas por que ela teve essa concepção sobre mim se não falava comigo, não me dava bom dia, só se dirigia a mim para pedir coisas emprestadas? Se ela não me conhecia, por que falou aquilo?

Todas essas perguntas se passaram em questões de segundos em minha mente pois tinha que me concentrar no trabalho, era uma atividade para entregar no final da aula. Naquele dia voltei para casa me perguntando “mas eu sempre estudei em escola particular, não foi?”. Assim que cheguei em casa contei a minha mãe o que aconteceu. E ele me perguntou se eu tinha respondido a menina eu disse que não. A verdade é que aquilo me foi dito quando eu não esperava, fui pega desprevenida. O choque que tive não me deixou responder.

A minha vida toda tive acesso ao ensino privado, um ensino conservador, o qual não contemplava letramento racial ou qualquer informação relevante sobe questões raciais. Mesmo a Lei 10.639 sendo de 2010, eu infelizmente preciso dizer que nas duas escolas nas quais estudei não houve abordagem, fala, trabalho, atividades decentes sobre as questões raciais. E quando falavam sobre eram falas do discurso mítico da democracia racial. Ouvi coisas como “cotas são excludentes, inferiorizam os negros”, “somos todos iguais, independente da cor da pele” e “amor não tem cor”.

Até ano passado me culpava por não respondê-la com um “Não sei por experiência, porque eu nunca estudei em escolas públicas, mas eu sei que infelizmente não têm o devido investimento do governo”. Hoje em dia penso “Como eu poderia respondê-la se eu não tinha recursos e conhecimento suficiente sobre as questões raciais, os quais tenho hoje, naquela época?”.

Minha mãe sempre me disse que eu precisava estudar muito porque ia enfrentar obstáculos que outros iam colocar no meu caminho somente por conta da cor da minha pele. Naquela época minha mãe possuía graduação, mas trabalhava em casa, pois deixou seu emprego para constituir uma família. Ela já sabia responder a micro agressões racistas, só que depois de se tornar professora e cursar a pós-graduação em Relações Raciais pela Universidade Federal Fluminense (UFF) ela compreendeu o racismo enquanto estrutura, e passou a identificar e combater essas agressões com muito mais veemência. E o aprendizado que ela adquiriu foi aos poucos me passando. A forma que ela analisava alguns filmes, programas de TV e músicas me fez achar que ela estava exagerando e houve momentos em que eu nem queria mais assistir televisão com ela. Com o tempo fui prestando mais atenção no que ela dizia, passei a querer ler os livros e textos que ela lia, queria buscar a consciência racial que ela estava a adquirir pouco a pouco.

Devo dizer que minha mãe foi minha primeira inspiração para ir em busca da minha identidade enquanto mulher negra. Diria a Júlia de alguns anos atrás para não ignorar as falas de sua mãe na época da pós-graduação. Através dos ensinamentos dela abri minha mente e meus olhos para o racismo estrutural, comecei a me enxergar enquanto negra e a buscar me informar para combater as estruturas racistas desta sociedade brasileira cujo mito da democracia racial ainda vive.



 

Autora: Júlia Maria Oliveira Ponciano

Estudante de Biblioteconomia pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) desde 2018. Desde nova me interesso por questões raciais. Ao iniciar minha vida acadêmica tive acesso a estudos sobre gênero e interseccionalidade. Quando entrei no Projeto de Iniciação Científica pude adentrar o grupo PRINT.


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