A Análise Crítica do Discurso é um campo inter/multi/transdisciplinar de pesquisa que, iniciado no final da década de 1980 por pesquisadores como Norman Fairclough e Theo van Dijk, dentre outros, está interessado na relação entre linguagem e sociedade, sobretudo, quando da veiculação das relações de poder e combate às desigualdades.
O objetivo primordial do campo é contribuir com a problematização das injustiças sociais, de maneira a tentar compreender as mazelas que se mostram principalmente nas desigualdades e assimetrias da sociedade, subjugando alguns e mantendo outros no poder. Seu objetivo é, portanto, de natureza interventiva e emancipatória dos grupos subjugados, por isso, seu foco reside nas possibilidades de mudança social. Por natureza, esse campo é contrário ao servilismo e ao colonialismo do ser, do viver e do saber.
É nesse ponto que seu diálogo com outras áreas do conhecimento se mostra produtivo e, de maneira estreita, pode se relacionar relevantemente aos estudos interseccionais os quais colocam em evidência diferentes infortúnios que assolam grupos sociais tendo como motivação especialmente as categorias de raça, gênero, sexualidade e classe.
Interseccionalidade é um termo utilizado em geral para o estudo da intersecção de identidades e sistemas sociais geradores de opressão, dominação ou discriminação, problemas que apoiam e consubstanciam diversos preconceitos que causam desvantagens a alguns grupos da sociedade lhes trazendo vulnerabilidade e dificuldades de mobilidade social.
Tais problemas têm realidades não discursivas como principal ponto de apoio, para construções sociodiscursivas de mundo que se constituem como o pano de fundo para realidades sociais injustas. Um dos grandes motivos para isso tem sido algo físico e distintivo - como cor, corpo, sexo biológico, etnia, “raça”, condição socioeconômica – o qual é considerado fora de um suposto padrão de normalidade tomado como referência e que motiva práticas excludentes e criminosas de ação, inclusive na forma de violências física e simbólica.
Apesar do apoio em aspectos físicos considerados distintivos, é por meio do discurso, entendido como uma prática social, que se erije a posição do homem, macho, heterossexual, branco, de classe média a alta, como o padrão hegemônico. Esse discurso, por sua vez, toma essa perspectiva como êmbolo para formas de pensamento excludentes quanto às chamadas “minorias” ou como alguns têm preferido chamar por diferentes motivos “maiorias minoritarizadas”.
Discursos machistas, sexistas, racistas e classistas, por exemplo, têm, em alguma realidade material que não coincida com o suposto padrão hegemônico de normalização social, uma tentativa de constituição de uma realidade social única que relega grupos inteiros de pessoas a um lugar subalterno.
E, por isso, toda forma de pensamento e crença que dissemine exclusão, preconceito e ódio precisam ser combatidas, na medida em que, acima de quaisquer coisas, deve estar a promoção da justiça social e da dignidade humana.
Realidades sociais são construídas, assim como identidades são performatizadas na condução de nossas vidas. E a consciência disso é uma das principais formas de intervenção no status quo de numa sociedade socioculturalmente adoecida como a nossa.
Embora seja de conhecimento geral e marco dos debates sobre interseccionalidade as lutas e teorizações dos movimentos feministas negros nos Estados Unidos e no Reino Unido entre os anos 1970 e 1980, o termo em si foi usado na teoria crítica em 1989 por Kimberlé Crenshaw. No entanto, essas teorizações também se fizeram presentes no Brasil, embora não sob esse rótulo, por importantes intelectuais como Lélia González, célebre teórica feminista, ao trazer à baila as questões envolvidas na intersecção entre categorias sociais que geravam importantes debates em torno desse tema.
E dessa forma, problemas sociais como racismo, sexismo, classismo, colonialismo, patriarcalismo, machismo, capacitismo, xenofobia, homofobia e transfobia, dentre outros, tornaram-se grandes pautas desses estudos, no combate a intolerâncias, injustiças e na ampliação da luta pelos direitos do ser humano.
Como uma área responsiva às questões sociais, a Análise Crítica do Discurso não se furta dos constantes debates e embates que o pensamento contra- hegemônico propõe. Por isso, ela pode (e tem contribuído) com a perspectiva interseccional, pois ambas se mostram sensíveis às relações que se estabelecem no interior da sociedade e dos próprios grupos que sofrem com as diferentes doenças socioculturalmente transmissíveis que sustentam e mantém as desigualdades, a violência, a discriminação e o preconceito.
O que tento ponderar é que grupos como de negros/pretos, mulheres, LGBTQIAP+, pessoas com deficiência, dentre outros, também não são grupos homogêneos porque as intersecções entre eles produzem demandas diferentes. Ou seja, se ser mulher branca traz desvantagens numa sociedade machista, ser mulher e negra trará, na intersecção entre essas duas categorias, um algo a mais que deve ser considerado em uma pauta já posta. Isso já mostraria alguma vantagem se tivéssemos analisando o caso de homem negro, pois não sofreria o que a mulher sofreria. E dessa forma, ser mulher, negra e trans implicará demandas outras. E sucessivamente, poderíamos continuar, se tivéssemos uma mulher negra, trans, com sobrepeso e/ou nanismo ou que fosse cadeirante, por exemplo. Todos os elementos interseccionais possíveis levam a necessidades diferenciadas e à ampliação das pautas que lutam por respeito, acessibilidade, dignidade e justiça social.
O que as abordagens aqui citadas nos colocam é uma possibilidade de construir novas formas de ver e conceber o mundo que tenham o respeito, a empatia e a igualdade social e de direitos como pilares para a construção de uma sociedade mais justa e digna e capaz de promover o bem-estar de todos.
Assim como o racismo é, essencialmente, um problema do branco, o machismo é um problema do macho, pois só reconhecem a si como padrão. Nesse sentido, precisamos abrir as discussões, sobretudo dentro desses grupos que se colocam acima de outros para reconhecermos as mudanças já em curso, posto que “brancos” e “machos” não constituem também um grupo homogêneo, pois em seu interior muitos de seus membros não compactuam com a visão unilateral e excludente que se originou de toda uma história de opressão a outros grupos.
A posição política que assumimos é importante para luta contra as desigualdades de toda sorte e para que resistamos a todo tipo de violência, opressão e preconceito. Todavia, ela não pode se tornar uma barreira para a produção do ser e do saber solidários, pois, para além das diferenças, sempre será melhor fortalecer os laços de solidariedade em vez das razões tensivas originárias na posição inicial de determinadas identidades específicas socialmente construídas e performatizadas. E nesse sentido, precisamos avançar nas discussões, nas proposições, nas mudanças que queremos, nas mudanças em curso e naqueles problemas que se mostram difíceis de transpor, minando-os de todos os ângulos e lugares, principalmente de dentro, abraçando aqueles que, não pertencendo ao grupo de origem da luta, compreendem e se fazem lutadores pela causa.
E assim, podemos estender a outras possibilidades de criação e manutenção de pensamentos, bem como a novas concepções de mundo libertadoras das amarras da discriminação e do preconceito. A questão não é perceber os traços de branco, de homem, de macho ou da condição socioeconômica do outro e que o faz acreditar em sua suposta superioridade, mas focar os traços de humanidade que se perdem quando não se coloca como ponto crucial o respeito pela diversidade que constitui o tecido social; diversidade esta que se constitui como a grande realidade palpável que nos une e nos torna fortes na pluralidade.
Entender essa conjuntura é uma forma de redescrição da geografia social e cultural, demonstrando uma forma de renarrar essa história de exclusão, opressão, violência e injustiça, bem como de redesenhar a sociedade e a cultura em prol do bem comum.
Autor: Cláudio Márcio do Carmo (UFSJ/CNPq) Professor Associado de Linguística e Língua Portuguesa (UFSJ), Mestre em Linguística e Doutor em Linguística Aplicada pela UFMG, com estágios de Pós-Doutoramento em Antropologia pela USP e em Linguística Aplicada pela UGA-EUA. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do Conselho de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
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