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A fome em Carolina Maria de Jesus e Macabéa

Um diálogo entre os livros "Quarto de Despejo" de Carolina Maria de Jesus e "A hora da estrela" de Clarice Lispector.


A cena literária tem sido ocupada cada vez mais por mulheres negras, isso é fruto de muita luta e disputas. Como exemplos, temos: as norte-americanas Toni Morrison, Alice Walker e Maya Angelou, as brasileiras Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Úrsula Firmino dos Reis, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie. Mostrando que importa sim quem escreve, porque escrever é um ato político, no qual as escritoras negras têm criado uma tradição literária.


Carolina Maria de Jesus é uma dessas mulheres, ela escreveu seu diário nos anos de 1955 e 1960, período do governo Juscelino Kubitschek, com isso seu diário traz críticas políticas. A autora denuncia a fome, a pobreza e as condições de vida na favela do Canindé, em São Paulo. Carolina era catadora de materiais recicláveis, andava pelas ruas com seus três filhos. Carolina denuncia o racismo, sendo impossível falar da sua obra sem relacionar o tripé: raça, gênero e classe.


A literatura possibilita o contato com novas experiências, com uma nova realidade, conecta a pessoa que lê com outras histórias, por meio da leitura podemos reconhecer nossos privilégios. Como se sensibilizar diante de problemáticas sociais, como a questão da fome presente na obra “A hora da estrela”, protagonizada pela personagem Macabéa, escrito pela autora Clarice Lispector e pelo diário de Carolina Maria de Jesus, “Quarto de Despejo: diário de uma favelada”.


A obra de Clarice Lispector é considerada um cânone literário, portadora de privilégios pela questão da cor e da classe social que pertencia, percebemos o preconceito e o racismo em torno da escrita literária de Carolina Maria de Jesus, que não tem tanto reconhecimento como a outra autora.


Macabéa e Carolina dialogam em alguns pontos. O enredo do livro mostra que Macabéa é uma personagem feminina que foi criada por um homem, o narrador Rodrigo S.M., que escreve a partir de sua percepção, de forma violenta, sem ter empatia pela protagonista. Como vemos pela fala: “[...] apesar da impaciência que eu tenho por essa moça” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 16). Justifica logo no início que uma narradora mulher não daria certo, porque a história iria lacrimejar piegas. “Um outro escritor, sim, mas teria que ser homem porque escritora mulher pode lacrimejar piegas” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 14).


Assim, como há ainda muitas Carolinas, repetem a vida sobrevivendo do lixo, também há muitas Macabéas, repetindo a situação de miséria. Quantas Macabéas existem por aí, comendo pão com salsicha, com fome, sem se conhecer? Vivendo uma vida sem muito sentido, um estrangeira, uma nordestina no Rio de Janeiro. Exilada da sua própria vida. Como vemos pela própria passagem do livro:


Como a nordestina, há milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto existiram como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama por não saber a quem. Esse quem será que existe? (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 14)


Diferentemente de Carolina Maria de Jesus que tem uma personalidade forte, que se indaga, questiona e revolta. Macabéa se caracteriza por uma personagem passiva, que tem um estranhamento, é apartada de si, não se sente mulher, nem gente. “Essa moça não sabia que ela era o que era, assim como um cachorro não sabe que é cachorro” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 27). Agressivamente denominada por seu ex-namorado como “cabelo na sopa”, alguém indesejada.


Esse não se sentir pessoa é a marca da pobreza, que retira o direito de ser, reduz o ser humano ao animal. Como já dissemos anteriormente, Carolina se vê obrigada a comer do lixo, “Um operário perguntou-me: – É verdade que você come o que encontra no lixo? – O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animaes” (CAROLINA MARIA DE JESUS, 2014, p. 112).


Além da repetição da miséria em diversas Macabéas e Carolinas, a pobreza restringe o direito de se sentir “gente”. Ambas sofrem com a questão da invisibilidade, “a pessoa de quem vou fazer é tão tola que às vezes sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde o sorriso porque nem ao menos a olham” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 16).


Carolina mora na favela, Macabéa divide um quarto, ambas sofrem com a falta de espaço e vivem no “quarto de despejo”. “Então, no dia seguinte, quando as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela teve pela primeira vez na vida uma coisa preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela. Mal acreditava que usufruía o espaço” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 41).


Outra questão central, no livro “A Hora da Estrela” e no “Quarto de Despejo” é a fome: “Às vezes antes de dormir sentia fome e ficava meio alucinada pensando em coxa de vaca. O remédio então era mastigar papel bem mastigadinho e engolir” (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 32).


– O que é que você come?

– Cachorro-quente.

– Só?

– Às vezes como sanduíche de mortadela.

– Que é que você bebe? Leite?

– Só café e refrigerante.

– Que refrigerante? — perguntou ele sem saber o que falar. Atoa indagou:

– Você às vezes tem crise de vômito?

– Ah, nunca! exclamou muito espantada, pois não era doída de desperdiçar comida, como eu disse (CLARICE LISPECTOR, 1998, p. 67).


Carolina afirma: "A fome é a pior das enfermidades” (Carolina Maria de Jesus, 2014, p. 54). Em toda sua obra ela denuncia essa questão, muitas vezes ela e sua família tem que comer do lixo:


Chegou um caminhão aqui na favela. O motorista e o seu ajudante jogam umas latas. É linguiça enlatada. Penso: É assim que fazem esses comerciantes insaciáveis. Ficam esperando os preços subir na ganancia de ganhar mais. E quando apodrece jogam foram para os corvos e os infelizes favelados. [...] Vejo as crianças abrir as latas de linguiça e exclamar satisfeitas: – Hum! Tá gostosa! A Dona Alice deu-me uma para experimentar. Mas a lata está estufada. Já está podre. ” (CAROLINA MARIA DE JESUS, 2014, p. 34).



REFERÊNCIAS


JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada. São Paulo: Ática, 2014.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.



 

SOBRE A AUTORA


Bárbara Rosa

Graduada, mestre e doutora em Serviço Social pela UNESP. Graduada em Filosofia pela UNIFRAN. Doutora em Psicologia pela USP. Atualmente pós-doutoranda em Memória Social pela UNIRIO.

1 comentário

1 Comment


Ana Taveira
Ana Taveira
May 10, 2023

Genial! Dois dos meus livros preferidos e eu nunca pensaria nesse paralelo, apesar de óbvio, precisa de um olhar atento, quase um "delicado essencial". Adoro acompanhar as publicações da autora, um olhar que aperfeiçoa o meu! Grata.

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